segunda-feira, 31 de março de 2014

No mundo do seu colo

Eu choro pelo choro
derramado sem por quê.
Eu choro pela amada
que desconhecia quê
a fazia assim chorar.

Eu choro pelo sangue
pulsado no partido
dos sofredores assim
tão apertados, sufocados.

Choro pela mulher
culpada por chorar
violentada no silêncio
obrigada a se calar.

Choro pelo chorar
da ave embalada
dum emplasto endiabrado
sem gozar do seu cantar.

Não de tristeza escorre,
de vergonha rola
na lombada vermelha
e na terra semeia
na primavera um brotar
da revolta de lutar
sem nunca descansar.
Uma causa perdida,
uma esperança cedida
pelas tranças no chão
da menina sofrida
do doente cidadão.

domingo, 23 de março de 2014

Marias

Se eu te disser sobre a Maria, você provavelmente irá me dizer "Mas... Estamos falando da mesma Maria?"

Há tantas Marias!

As Marias vizinhas. Fofoqueiras, cozinheiras, confeiteiras, maloqueiras, caseiras e paqueradoras. Tão normais e felizes! São o Sol de uma rua nublada.

Não se esqueça das Marias mães, irmãs, tias, primas, avós, amigas e filhas. Desde a avó Maria, que você jura fazer a melhor comida do mundo, até a Mariazinha, filha de um João Ninguém.

Falando em Joões... Acho que podemos deixar eles um pouco de lado por aqui, certo?

Voltemos para as Marias. Há aquelas que são até compostas. Maria-gasolina, Maria-chuteira, Maria-sapatão e Maria-mijona. Tão infelizes quanto, tão dos outros quanto.

Tão dos outros... Sofrem, gritam, lutam, choram e se machucam. E coitadas, acham que a culpa é delas mesmas. Então sorriem, aceitam, se calam e abraçam o homem, o mundo.

Tem também as Marias que são Sarah, Gracie, ou até Aoi! E nós que pensávamos que azul era cor de menino!

Tem Marias que são umas Graças! E tem Marias que são doces, de tão moles.

Mas você hem Maria, já foi até Santa, e agora limpa o chão do homem que te maltrata. Aquele homem que te ama, aquele, sabe? Que te sustenta, aquele que disse como você é boba e patética. Aquele que te bate. Lembra? Aquele homem, aquele mundo que te esmaga e reprime.

Maria... Nem sei o que dizer. Você que é todas e uma só. Por que sofre tanto? Será que é o frio? Ou é o medo que te cala?

Grita, Maria! Grita, solta a voz! Sua voz que é de todas nós. Somos todas Marias. Grita o M de Maria, grita o M de Mulher. Grita e traz o Sol de volta pro nosso mundo nublado e chuvoso.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Vida

Qual o maior prazer da vida de um ser humano se não reclamar da mesma?

Há tempos senti uma melancolia incrivelmente forte. Começara em minhas pernas fracas e cansadas, e passou logo para os pulmões. Acabei por esquecer como antes nem os percebia ali. Trabalhavam tão bem! Agora, como se invejassem as estruturas que me mantinham em pé, trabalhavam devagar e preguiçosos.

Acontece que era muito amada, e quando digo muito, quero dizer em demasia, amor que transbordava os limites do bom senso. Era mesmo como uma típica garotinha mimada e temperamental. Mas fazer oque? Fazia assim, e assim tinha que aceitar, me amava! Tão amada fui, que tal sentimento me trouxe ao que sou hoje, melancólica até os cabelos.

Não mentirei, tirava sim proveito de toda atenção. Que mal tinha? Me adorava! Mas tanto amor, tanta atenção, tanto cuidado, tanta preocupação, tanto tudo me irritavam. Comecei a trata-la mal, afinal, se fosse do meu jeito, importaria? Eu era amada!

Quanta melancolia... "Que pessoa em tal condição reclamaria da vida?" você perguntaria. A eterna busca humana não é mesmo o amor? E nem eu poderia dizer que tal exagero me trouxe ao que sou hoje...

Mas se não a tivesse, não reclamaria. A beleza da vida é mesmo esta, reclamar da dona, questiona-la, sobreviver com seu fardo e ama-la. Amar até não restar mais amor por nenhuma parte. Quando a melancolia e o ócio tomarem a alma e os cabelos, quando os pulmões pesarem, quando os olhos secarem e quando o coração se desabilitasse.

Tanta abundancia de um sentimento apenas me pesou tanto, que desisti de carregar tal fardo. Ela tão irritada e desapontada, mais triste que eu, disse que desistiria também. Mas como previsto, o apreço era tanto que não conseguira. Continuou amando, continuei me esquivando e me escondendo na melancolia.

Confesso que a amava também, tanto que quando resolveu partir, tomei de bom grado sua decisão, seria ela enfim livre para o amor próprio. E eu, sem mais do que reclamar, comecei a escrever.

terça-feira, 4 de março de 2014

Nu

Para uns ela era um bolinho com pedaços faltando. Uma frase mal construída. Me recordo de ouvir alguém a definir como um fantasma das dimensões. Mas ela se considerava mesmo apenas feliz.

Luiza estudou comigo a maior parte do colegial, não era bonita, mas sua aparência não era especialmente desagradável. Oque matavam mesmo eram seus olhos. Eram olhos pesados, não transmitiam sentimentos e pareciam ter perdido o brilho da vida. Olhos baixos de peixe morto. E eu a odiava tanto.

Não por sua aparência, mas simplesmente por ser do jeito que era. Como se não estivesse em lugar algum e soubesse de tudo sobre todos os lugares. Os das almas, do mundo, das Américas e dos pensamentos. Aqueles olhos pareciam ler sem tropeço até as linhas mais borradas da nossa vida. E dela nada sabíamos.

Algumas pessoas aceitavam que não a entendiam mesmo, para elas, Luiza era apenas uma garota estranha. Outras nem se davam ao trabalho de olhar. E eu me importava tanto que até achei que fosse amor.

Não tivemos aula numa quarta, pois ela havia sido assassinada. Na TV, o repórter falou "Luíza Moreira de 16 anos foi brutalmente assassinada ontem na porta de sua casa. Sua mãe disse que ela era uma garota feliz e não tinha desavenças com ninguém." Ela era uma garota feliz...

Na semana seguinte foi como se nada tivesse acontecido, e isso me incomodou profundamente. Como não sabiam muito sobre ela, não tinham sobre oque falar.  Mas mesmo assim eu ainda me importava.

No final, tudo oque eu soube daquela garota opaca e reservada é que era feliz, apesar de carregar o fardo dos corações do mundo. E eu carregava-os ao dobro, pois por ela tinha paixão, não era mesmo amor, era profunda fascinação.